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Exercício da Preceptoria: Espaço
de Desenvolvimento de Práticas de
Educação Permanente
Eliana C. O. Ribeiro
Resumo
A preceptoria, voltada ao ensino em situações clínicas reais no próprio ambiente de
trabalho, é indissociável da prática dos serviços,
e é construída, implícita ou explicitamente, à
luz da mesma ótica que os organizam. O artigo
destaca a preceptoria como processo capaz de
favorecer práticas reflexivas e de gestão coletiva
do trabalho alinhadas à educação permanente.
A educação permanente, como reflexão no
trabalho para o trabalho, tensiona as práticas
de saúde concebidas apenas em sua dimensão
técnica, favorecendo a análise mais integrada
dos problemas que afetam pacientes, equipes e
profissionais de saúde. A formação de profissionais reflexivos é um componente essencial
para a implementação da educação permanente,
prática que, por sua vez, potencializa a capacidade reflexiva e de gestão do trabalho coletivo
das equipes profissionais. Os preceptores têm
um papel determinante na construção desse
isomorfismo entre os processos formativos e
aqueles que desejamos possam prevalecer nos
serviços de saúde. Por outro lado, ao fazê-lo,
fortalecem as instituições formadoras em seu
compromisso social de construção de práticas
de saúde comprometidas com a qualidade e o
exercício da cidadania.
PALAVRAS-CHAVE: Preceptoria; Educação em saúde.
Introdução
Recentemente, participei de um trabalho
de reflexão sobre as atividades que os preceptores de um programa de residência multiprofissional desenvolviam nos serviços com
os residentes. Algumas atividades apareceram
claramente descritas, ainda que traduzidas
por conceitos de tutoria, preceptoria e supervisão que ainda guardam limites imprecisos,
tal como apontam os artigos de Botti e Rego.1
As atividades pedagógicas incluíam discussão
de casos clínicos, reflexão em grupos sobre
situações clínicas vivenciadas e sobre a bibliografia que poderia ser interessante ser buscada
pelos residentes, mas chamou nossa atenção
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que a avaliação representava praticamente um
espaço vazio. Refletindo sobre esse silêncio da
avaliação na prática dos preceptores, pensamos
que poderia representar uma indefinição sobre
os resultados que pretendiam avançar e sobre
os caminhos que deveriam percorrer. Em verdade, os preceptores nunca haviam discutido
ou planejado o que fariam, de maneira que os
residentes chegavam aos serviços - assim nos
relataram - e eram inseridos nas atividades
cotidianas. E eles, preceptores, abertos às experiências de ensino-aprendizagem, buscaram
oferecer o que de melhor tinham com base em
suas vivências prévias. Dedicamos um tempo
para conversar sobre isso, e pareceu-nos claro
que, de fato, não havia planejamento, não havia
uma intencionalidade explicitada, pactuada,
que orientasse práticas e decisões no exercício
da preceptoria: os sujeitos preceptores fazem o
trabalho, mas não se reconhecem como aqueles
que o constroem e transformam.
A reflexão trazida nesse artigo parte da idéia
de que nossas práticas profissionais partem de
concepções sobre o trabalho fortemente arraigadas na sociedade e no campo da saúde que,
justamente, concebem-no como se existisse sem
sujeitos nem contextos. Em outro momento
dissemos:
“...o trabalho...reduzido frequentemente à
dimensão objetiva e técnica das práticas
profissionais e ao mundo do emprego,
..se reflete em um estilo de gestão que, na
prática, considera como objetos tanto os
pacientes quanto o pessoal dos serviços. Falamos de normas, rotinas, horários, escalas
de plantões, salários, e a cada dia repetimos,
quase mecanicamente, nossas atividades.
Perdemos, assim, progressivamente, a dimensão do sentido ou razão de que todos
nós que estamos ali, naquele serviço, se deve
à possibilidade de que o nosso trabalho se
dirija a alcançar, em todas e em cada uma
das etapas e processos ali desenvolvidos, um
mesmo fim, uma mesma missão: um cuidaA
Parte desse texto deriva de minha tese de doutorado3
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Revista do Hospital Universitário Pedro Ernesto, UERJ
do adequado às necessidades dos usuários”2
A educação permanente - como reflexão
no trabalho para o trabalho - vai tensionar
profundamente as práticas de saúde concebidas
apenas em sua dimensão técnica. Nesse sentido,
a preceptoria, voltada ao ensino em situações
clínicas reais, no próprio ambiente de trabalho, é indissociável da prática dos serviços, e é
construída, implícita ou explicitamente, à luz da
mesma ótica que os organizam, tencionando-a
ou reproduzindo-a.
Reconhecer essa dimensão da preceptoria
é um dos passos para compreender que ela
acontece num contexto que tem uma história,
que tem uma cultura da qual participam sujeitos
preceptores, pacientes, residentes, gestores, cada
um deles com seus valores, idéias, concepções,
muitas vezes em conflito.
O presente artigo tem como objetivo
abordar, ainda que de forma sucinta, as implicações dessa abordagem para o exercício da
preceptoria.
A prática da preceptoria à luz
de diferentes visões sobre a
formação do profissional de
saúdea
O campo da saúde vem passando por
profundas transformações em decorrência das
mudanças dos contextos socioeconômicos e
políticos, dos perfis epidemiológicos de saúde, dos padrões de exercício profissional, de
inserção profissional no mercado de trabalho
e da organização dos serviços, sistemas e práticas de saúde. A privatização dos serviços de
atendimento à população, particularmente via
o processo de terceirização, o desenvolvimento
científico acelerado, a incorporação crescente
de tecnologia e as diferentes modalidades de inserção laboral, entre outros elementos, exercem
impacto decisivo sobre a prática em saúde e as
bases éticas do exercício profissional.
Por outro lado, a rapidez das transformações em curso e a volatilidade da base cognitiva
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dos perfis profissionais impõem uma formação
cada vez mais ampla, requerendo a construção
de uma sólida base cientifica, ética e cultural, e
o domínio de ferramentas de avaliação crítica
do conhecimento e das transformações mundiais, atributos necessários para um exercício
profissional especializado, instável e mutante.4
A educação dos profissionais de saúde - em
todos os seus níveis, desde a graduação até a
pós-graduação - situa-se na confluência dessas
transformações marcantes no campo da saúde
com aquelas resultantes da reestruturação do
ensino superior.
Os modelos socialmente legitimados e
dominantes de formação para o exercício
profissional são orientados pelas concepções
sobre o processo saúde-doença que sustentam
as práticas hegemônicas em saúde, construídas
à luz dos paradigmas racionalista e mecanicista
que, por definição, excluem a dimensão social e
histórica dos sujeitos do cuidado e de sua prática. Tais concepções permitem dissociar a formação profissional - identificada por uma sólida
base pretensamente neutra de conhecimentos
científicos que orientam o fazer - da dinâmica
e da constituição social dos próprios espaços
das práticas em saúde. Permitem, igualmente,
desconsiderar a natureza social da educação,
reduzindo o processo de formação à transmissão
de saberes inquestionados por meio de técnicas
de ensino manejadas por agentes destituídos de
intencionalidade, com o objetivo de conformar
um perfil profissional pretensamente universal.
Quando a formação é deslocada do espaço restrito de conteúdos e capacidades sob o
domínio dos docentes no âmbito de suas disciplinas, é possível entendê-la como processo
mais amplo, como um campo que não é regido
pelos princípios da homeostase biológica mas
pelos interesses e valores de diferentes atores
que defendem perfis profissionais e práticas
sanitárias diversas, ajustados a seus diferentes
projetos político-ideológicos.
Os planos de ensino passam, sob essa ótica,
a ser entendidos como a tradução do contrato
social que orienta a escola, e se expressam na
seleção e na ordenação dos conteúdos de ensino,
nas relações entre docentes e alunos, nas experiências de ensino-aprendizagem e de avaliação
que promove, no conhecimento que produz
sobre o que pretende transformar. Nesse sentido,
a prática educativa passa a ser entendida como
espaço de mediação de outras tantas práticas socialmente construídas. Sua transformação passa
pelo reconhecimento pelos sujeitos - docentes e
alunos - das profundas raízes das práticas educativas e de cuidado que intencionam mudar e é
neste reconhecimento que reside a possibilidade
de moverem-se como sujeitos individuais e coletivos e de ampliarem seus graus de autonomia
de ação para a mudança.
A prática da preceptoria pode ser questionada à luz das abordagens apresentadas, permitindo uma fértil reflexão sobre seus objetivos,
o lugar dos sujeitos, as práticas e cenários da
formação. Ainda que opere no cenário real do
cuidado, as condições e contexto fazem parte da
reflexão clínica ou prepondera ainda a discussão sobre o “caso”? Os objetivos do trabalho da
preceptoria restringem-se àqueles voltados ao
desenvolvimento das capacidades individuais
dos alunos ou abrangem o compromisso da
equipe de trabalho com a qualidade do serviço
prestado aos pacientes? A preceptoria está voltada para o seguimento de normas previamente
definidas ou para a reflexão crítica de planos de
cuidado ajustados a cada caso singular? A discussão entre preceptores e alunos é fortemente
orientada para o domínio do conhecimento
científico subjacente às práticas ou também
incorpora as dimensões da cultura e valores da
instituição, do serviço e das pessoas manifestas
nas ações de saúde desenvolvidas?
As questões apresentadas fazem parte das
decisões que os preceptores tomam a cada dia, e
podem tornar-se objeto da reflexão docente sobre seu próprio trabalho, nos moldes propostos
pela educação permanente.
Educação Permanente:
educação, trabalho e gestão
imbricados
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Pensar a relação entre trabalho e ensino
no campo da saúde no BrasilB impõe a reflexão
sobre a educação permanente. Nos espaços do
trabalho, ela pode concretizar-se na reflexão
sobre os problemas enfrentados no cotidiano
em busca da melhoria do cuidado às pessoas. Os
problemas, nessa concepção, se tornam objeto
para a transformação das práticas: é na busca
para entendê-los e explicá-los que a equipe de
saúde encontra os entraves para a melhoria do
que fazem. Debruçar-se sobre os determinantes
dos problemas significa abordar as múltiplas
dimensões que o processo de trabalho envolve,
incluindo questões das esferas organizacional,
técnica e humana.6 Dessa maneira, como parte
dos problemas deriva não apenas de lacunas de
conhecimentos da equipe de trabalho, a reflexão
permite uma aproximação com os processos de
cuidar, razão pela qual a educação permanente
também é entendida como ferramenta de gestão.
Como os problemas podem ter “causas” variáveis e imbricadas, os profissionais enfrentam a
complexidade do mundo real - negligenciada
por uma formação reducionista - que, muitas
vezes, os assustam e os fazem perceber a distância entre as concepções de conhecimento profissional dominante nas escolas e as competências
exigidas em seus campos concretos de atuação.
O trabalho do preceptor na
construção de profissionais
competentes: reflexão crítica
nos cenários de trabalho
Em seu livro “Educando o Profissional
Reflexivo”, Donald Schön7 analisa como abordamos situações problemáticas de formas diferentes, dependendo de nossos antecedentes
disciplinares, papéis organizacionais, histórias
passadas, interesses e perspectivas econômicas
e políticas. Adicionando complexidade à prática,
complementa o autor:
“..as situações são problemáticas de várias
formas ao mesmo tempo...Essas zonas inB
determinadas da prática- incerteza, a singularidade e os conflitos de valores- escapam
aos canones da racionalidade técnica. No
entanto, são exatamente tais zonas indeterminadas da prática que os profissionais
e os observadores críticos das profissões
têm visto, com cada vez mais clareza nas
últimas duas décadas, como sendo um
aspecto central à prática profissional. E a
consciência crescente a respeito delas tem
figurado de forma proeminente em recentes
controvérsias sobre o desempenho das profissões especializadas e seu lugar na nossa
sociedade”( p.18)
É hoje sabido que o profissional competente
é forjado no enfrentamento de situações de incerteza, e não naquelas em que o conhecimento
acumulado permite respostas já consolidadas
em seu repertório de experiências prévias ou
em protocolos facilmente acessáveis por meio
da tecnologia de informação. É o que propõe
Ericsson8 ao desenvolver seu trabalho sobre
a construção da expertise clínica, salientando
como os profissionais que assumem práticas
rotinizadas estancam sua capacidade e desenvolvimento, em oposição àqueles que estão
permanentemente questionando e enfrentando
problemas novos.
Nesse contexto é que as práticas de preceptoria podem ser pensadas, resgatando seu
potencial de formar profissionais reflexivos,
capazes de arguir a pertinência das práticas
consolidadas, inconformados com a cegueira
das rotinas impensadas, fortemente vinculados
ao compromisso ético de se indagarem se estão
fazendo, como equipe e individualmente, o que
de melhor pode ser feito por seus pacientes.
A formação de profissionais reflexivos é um
componente essencial para a implementação da
educação permanente, prática que, por sua vez,
potencializa a capacidade reflexiva e de gestão
do trabalho coletivo das equipes profissionais.
Os preceptores têm um papel determinante na
Entendida no âmbito das políticas públicas ( Ministério da Saúde), coloca em relação às práticas de educação, de cuidado
e de gestão no SUS3
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Exercício da Preceptoria: Espaço de Desenvolvimento de Práticas de Educação Permanente
construção desse isomorfismo entre os processos formativos e aqueles que desejamos possam
prevalecer nos serviços de saúde. Por outro lado,
ao fazê-lo, fortalecem as instituições formadoras
em seu compromisso social de construção de
práticas de saúde comprometidas com a qualidade e o exercício da cidadania.
Referências
7. Schön D. Educando o profissional reflexivo - Um
novo design para o ensino e a aprendizagem.
Porto Alegre: Artmed; 2000.
8. Ericsson KA, Lehmann AC. Expert and
exceptional performance: Evidence of Maximal
Adaptation to Task Constraints. Annual Review
of Psychology. 1996;47:273-305.
Abstract
5. Pierantoni CR, Ribeiro EC. A importância da
educação permanente na formação do médico:
o docente como inovador/mediador/indutor de
condições de auto-aprendizagem. In: Arruda
BKG, editors. A educação profissional em
saúde e a realidade social. Recife; 2001. IMIP
- Instituto Materno-Infantil de Pernambuco Série Publicações Científicas, 1. p.179-201.
Preceptorship involving teaching in real
clinical practice situations within the working
environment and thereafter is constructed, implicitly or explicitly, according to the same perspective that organizes healthcare practices. This
article depicts preceptorship as a process capable
of bringing about reflexive and collective work
management practices that are aligned with
permanent education. Permanent education –
as a reflection at work for work – argues strictly
technical health practices approaches, favoring
a more integrated analysis of the problems that
affect patients, staff and healthcare professionals.
Reflexive professionals are essential for permanent education to be implemented since this
practice enhances the reflexive and collective
work management capabilities in professional
teams. Preceptors play a crucial role in the construction of this isomorphism between training
processes and those we wish would prevail in
healthcare services. On the other hand, in doing
that, they strengthen educational institutions in
their social commitment to building healthcare
practices committed to quality and citizenship.
6. Ribeiro ECO, Motta IJ. Educação Permanente
como estratégia de Reorganização dos Serviços
de Saúde. Olho Mágico. 1999 Nov. 5;Supl:39-45.
KEYWORDS: Preceptorship, Health education.
1. Botti SHO, Rego S. Preceptor, Supervisor, Tutor
e Mentor: Quais são Seus Papéis? Rev Bras Ed
Med. 2008;3:363-373.
2. Brito PQ, Roschke MA, Ribeiro EC. Educación
permanente, proceso de trabajo y calidad de
servicios de salud. In: Haddad,J, Roschke MA,
Davini, M.C. (Org). Educacion permanente
de persnal de salud. Washington: OPS/OMS;
1994. p.34-60.
3. Ribeiro, ECO. Representações de alunos e
docentes sobre a formação e o cuidado: uma
experiência de avaliação em escolas médicas.
Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Instituto de
Medicina Social, Universidade Federal do Rio
de Janeiro. 2003. p.332.
4. Brasil. Ministério da Saúde Portaria nº 198/
GM/MS em 13 de fevereiro de 2004. Institui a
Política Nacional de Educação Permanente em
Saúde para a formação e o desenvolvimento
de trabalhadores para o setor e dá outras
providências. Diário Oficial da União. 2004 Fev
14; Secção 1. Portuguese.
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